terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Beba Coca Cola - Décio Pignatari



A Joaninha Verde da Beira Mar


Apertando sem querer o botão automático
ela, de repente,
embarca no meu lado
aproveitando a artéria entupida do trânsito.

Ela desfila
explorando a transparência do vidro
e face negra enrugada do interior do automóvel,
tudo como se fosse a superfície lunar.

No vento artificial do ar condicionado
ela flutua com suas asas,
sem gravidade,
uma astronauta verde com bolinhas amarelas
viajando pela galáxia plástica e estofada.

Enquanto eu estou parado,
ela explora todas as possibilidades.
Enquanto eu em minha inércia
mastigo o cotidiano pesado,
ela viaja pelo tempo,
poucos metros
são mundos distantes.

Algumas horas passadas
consigo completar mais um dia cansativo,
chego a minha casa,
minhas narinas
lentamente vão se libertando do cheiro de surdina.

Abro a porta,
exausto,
A Joaninha Verde da Beira Mar
mergulha novamente no ar quente e leve,
suas anteninhas por um momento
fitam-me,
parecem zombar da minha existência “humana”.

Voa sem formalidade
sumindo entre as folhas verdes de um pequeno brejal,
ela também está de volta em casa.

Poema:Rodrigo V. Souza
Imagem: Internet

Jesus Lizano-Lizanato de la acracia


Todas as Vidas



Todas as Vidas
Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo…
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
tão desprezada,
tão murmurada…
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera
das obscuras!

Poema: Cora Carolina
Fotografia: Bela senhora - Bahia 2010 - Rodrigo Vargas Souza

Prisioneiro do Tempo



Começou porque me limitavam os anos
doze anos, quinze anos, vinte anos...
Eram limites, eram barreiras suportáveis:
ano que vem, quando completar trinta anos,
ano passado, o ano novo...
Eram limites amplos,
era possível a distância, o horizonte,
por muitos anos! Os espaços
dominavam o tempo,
recebia a aurora, despedia-se ao entardecer
generosamente e amava
docemente os sonhos.
Os anos eram os carcereiros
Rondavam muito distantes.
Havia quem vivia cem anos!
Mais tarde, começaram os meses a limitar-me,
apareceram de repente, tudo era muito diferente,
o tempo dominava os espaços,
era um limite mais opressor,
estavam próximos os carcereiros,
eram os carcereiro:
o mês que vem, dentro de uns meses,
me oprimiram meus próprios limites,
originavam limites!
O que havia ocorrido com aquelas suaves distâncias,
há tempo pela frente, dizia,
como me limitavam os anos.
Agora olhava com receio todas as coisas,
nove meses, três meses, um mês de prazo,
meses, meses voando sobre os sonhos.
E as semanas?
deixaram os meses de controlar-me
e um limite novo me controlava, uma medida nova
estendida pelo mundo inteiro,
cobrindo de ilusões todas suas galerias.
Contava a vida por semanas,
semana após semana.
Os carcereiros eram as autoridades da semana,
me distraíram, me envolviam nas falsas verdades,

semana que vem, dura pouco uma semana,
a semana santa,
meu mundo era a semana, a realidade era a semana,
a semana, só existia a semana.
Que seria um mês sem quatro semanas
e o que seria um ano sem cinquenta e duas semanas...
E contava as semanas
e via a humanidade ansiosa
uma semana forçada, vivendo para o fim de semana, vivos livres
somente no fim de semana.
Depois foram os dias,
comecei a contar os dias,
me assustavam os dias,
era questão de dias,
pesavam imensamente os dia
e desejava que os dias passassem
e eles não passaram...
Agarrava-me aos dias, bons dias,
o dia estava ali, era um carcereiro irremovível,
onipresente,
tudo media os dias,
não era livre! Não podia ser livre,

o dia de meu casamento, o dia de minha licenciatura em filosofia,
apenas encontrava um buraco para minha aventura,
era apenas espaço e eu necessito de espaço, muito espaço,
não podia separar- me dos dias,
um dia e outro dia,
o dia das forças armadas, amanhã será outro dia
outro dia!
Crescia a muralha dos dias,
o circo dos dias, um dia comia a outro dia,
os limites eram insustentáveis,
dias de jejum, dias de alegria
mas tudo medido, era preciso obedecer o dia,
despertar ao despertar do dia,
dormir ao dormir o dia,
a ordem do dia!,
um dia é um dia, nos próximos dias...
Agora, enquanto eu escrevo este poema,
Já não conto os dias mas as horas,
faltam três horas, dura quatro horas
que hora é, a que hora...
Os carcereiros se tornaram minha sombra,
apenas falo, as horas se confundem e me confundem,
limites, limites, a tarde, a manhã, o meio-dia,
uma hora cai sobre outra hora, espreme a outra,
uma hora é como outra hora,
hora adiantada, horas extraordinárias, horas atrás extraordinárias,
a dança das horas, horas perdidas, o recorde da hora,
não somos os seres, somos horas, corda de horas,
um cada duas horas, cada seis horas,
e soam as horas e só podes ouvir as horas,
e tudo tem que mover-se em um horário,
tudo deve estar à sua hora,
tudo tem sua hora,
quanto de minhas horas são minhas horas,
meia hora, um quarto de hora, a hora!
Me arrasa pensar que eu nasci para as horas,
abro as mãos e as tenho cheias com horas.
Ah, carcereiros, horas terríveis que nublam meus olhos:
dentro, os levo dentro, estou cheio de carcereiros, de sombras.
Não quero nem pensar como minha vida será
quando depender dos minutos, quando
sejam eles meus carcereiros e não existam
os espaços, os sonhos, as dúvidas,
quando meu corpo for uma garagem de minutos,
minutos, minutos, não tenho nenhum minuto, só cinco minutos,
tudo acontecerá em minutos, que fará de mim a fúria dos minutos,
quando não puder perder nenhum um minuto,
como eu poderei sonhar ou rebelar-me em um minuto,
que humilhação me aguarda quando em minha vida
só se mova as agulhas dos minutos,
que espaço que pode haver entre minuto e minuto.


Que noite escura havia em vocês, meses, anos,
e que traição seus espaços!
Eram minutos, minutos, só minutos!
Que o colapso do mundo será questão de minutos!
Finalmente, finalmente, ah, finalmente,
quando apenas alente um sopro em meus sentidos,
e só existam os segundos, sejam os segundos
esses que cercam meu corpo, minha vida,
todo meu ser um carcereiro monstruoso, um réptil, uma víbora
destruindo os últimas reflexos,
todo o mundo carcereiro horrível,
e quando todos sejam fantasmas e as idéias
convertam-se em nuvens
e os sentidos em cavernas
e nos últimos segundos
passem os anos, os meses, os dias, e as horas
convertidas em ar
e se fechem meus olhos e os rostos sem vida
riam como nunca por todos os abismos do mundo,
como desejarei seguir prisioneiro do tempo,
como amarei o tempo eu era tempo, doloroso tempo ,
como amarei os limites só eles não estavam
mortos

p;
os anos e os meses,
os dias as horas e os minutos,
todos os limites do mundo.
Como me apartará a eternidade do tempo!

Poema: Jesús Lizano de Berceo
Tradução: André Soares

Imagem: Metropolis - Expressionismo alemão

domingo, 12 de fevereiro de 2012

A la Mierda - Jesús Lizano de Berceo



Mierda, yo te saludo complacido
cuando sales patética y caliente
luego de abandonar em el crujiento
y alimento cuerpo tu sentido.
Nada, sin tu calor, se vê nacido
Ni sin verse em tu espejo es inocente,
mierda, pues nuestro fin es tu presente
desecho, no, sino vivir cumplido.
Es tu fermento el que transforma em huerta
un universo lleno de intestinos,
danza de lo cocido y de de locrudo,
porque sin ti la tierra es tierra muerta,
solos y muertos todos los caminos.
Mierda, madre común, yo te saludo.


Poema: Jesús Lizano de Berceo


Jesús Lizano de Berceo ( Barcelona , 23 de fevereiro de 1931 ), Bacharel em Filosofia, poeta e pensador libertário que defende o que ele chama de "misticismo libertário", a evolução do mundo real selvagem, onde todos os animais, exceto a espécie humana, que agora se encontra paralizada no Mundo Real Político, em seu caminho para fora o Mundo Real Poético, a acracia . Publica periódicamente " a coluna “poética e o poço político" na revista libertária “Polémica” publicado em Barcelona.
Jesús Lizano , é mais um “prisioneiro do tempo”, esgrima seu verso: Amador ...”e nos últimos segundos, os anos, os meses, os dias, e as horas convertidas em ar, e se fecha meus olhos e os rostos sem vida, riam como nunca para todos os abismos do mundo, como eu desejarei seguir o prisioneiro do tempo, como eu amarei na ocasião o tempo...- eu era tempo, doloroso tempo! como eu amei os limites, só eles não estavam mortos, os anos e os meses, os dias e as horas e os minutos, todos os limites do mundo. como me arrancará a eternidade do tempo!”


Imagem: Filme - Fita Branca

O copo era de vinho


A lua nua invade a noite
Roçando no véu das nuvens passantes
Cadelas no cio
Regendo a sinfonia da madrugada
Cachorros uivantes
Vira-latas em uma orgia de pau, pelos, vagina e luz

Um caco de vidro aranha o pálido piso bege
Respingado de orgasmo seco
Um inseto invertebrado mergulha dentro do copo
Quebrando o silêncio da superfície inerte
Suas asas,
Seu corpo minúsculo
Banhado de cor cereja
Mas quem embriaga hoje
Não é a fermentação prolongada
Não é a essência de alfazema concentrada
São as estrelas que brilham tímidas
O tímido cheiro de teu cabelo
Que insiste no travesseiro

Um inseto invertebrado mergulhou dentro do copo
Quebrando o silêncio da superfície inerte
Sorrindo
Ele respirou o último gosto de vida

O copo era de vinho

Poema: Rodrigo Vargas Souza
Foto: Internet

O rio com sapatos - Arte: André Soares

Arte: André Soares