sexta-feira, 10 de maio de 2013

Biografia à maneira de Diógenes


Salut, mon petit! On pense à toi.

Al Berto, autor de textos literários, viveu em Hispânia Citerior.
O seu local de nascimento certamente foi Conímbriga, ainda que não se tenha uma afirmação expressa. Se não houver nascido em Conímbriga, não teria sido mais longe que em suas proximidades. Não se conhece uma data fixa em relação a isso mas segundo as Crónicas, de Apolodoro, o evento se deu no “ano primeiro da 8ª Olimpíada, a 7ª de Targelion, dia em que os habitantes de Delos crêem que apareceu neste mundo Apolo” (D. L., III, 2). Nasceu com 3 kg 400g. No sexto dia pesou 3kg 200g, no décimo 3kg 200g e com 20 dias tinha já 3kg850g. Deu os primeiros passos aos onze meses e disse as primeiras palavras aos doze. Foi amamentado até aos cinco meses só pela mãe, depois a alimentação seguiu com farinha Nestlé. Vacinado contra a varíola aos três meses, esteve a sorrir ao sol durante uma manhã inteira e sentou-se pela primeira vez entre almofadas em 20 de Julho. Em Novembro começou a ser desmamado e ficou quatro noites com a aia, Arminda. Não deu trabalho nenhum a desmamar. Logo a ser desmamado esteve dez dias doentinho mas, felizmente, o desgosto não demorou muito. Sempre que lhe nascia um dentito ficava tristinho. Começou a levar injecções, pois estava muito fraco. Adoeceu com papeira no dia 11 de Outubro do ano seguinte.[i] Não se lhe sabem outras perturbações de saúde até ao fim da mocidade. Aos oito anos era um homem adulto, só mais tarde é que foi criança.
Prende-se Al Berto às famílias aristocráticas de Sinus, delas herdando, por via paterna, sua esmerada educação e acesso fácil aos grandes de seu tempo. Um período de reflexão e peregrinação antecede a sua obra. Diz Timóteo de Atenas em Biografias, que tinha voz penetrante. Refere que o seu mestre de pintura viu em sonho um dragão novo pousado sobre os seus joelhos, o qual, agitando logo as asas, se elevou nos ares, com doces cantos, e que, sendo-lhe levado no dia seguinte Al Berto como aprendiz, disse, eis aqui o “dragão em celulóide da infância”[ii] (D. L., III, 5). A resposta do discípulo – “lateja-me na língua um coração de papel” – circulou posteriormente, de boca em boca, nos ditirambos da época (D. L., III, 6). 
Ainda que a nobreza e a fortuna da família lhe permitissem condições para alcançar desde logo uma adiantada posição social, teve contudo que reservar-se frente à política do tempo. Conheceu o exílio e acompanhou os tumultos da vida democrática da Europa, os quais lhe deram muitas ocasiões para reflectir sobre a política e o homem em geral. Foi convidado para exercer funções públicas, que aceitou e honrou com dignidade. Sentiu-se, entretanto, desiludido com a realidade. Voltou-se para um plano de reforma das instituições. Seus escritos, mesmo os mais utópicos, tiveram portanto origem em situações reais.
Andou à procura do vento em jardins de Agosto, percorrendo dias a fio as Ilhas Gregas, a Sardenha, a Abissínia e a África do Norte. Foi o primeiro navegador dum sol incandescente – viagem da qual, infelizmente, não fica registo. Acreditava que o silêncio tem a espessura das papoulas e que a noite progride puxada à sirga. Tinha medo de estar sozinho e escrevia. Escrevia por medo e contra o medo. Escrevia muito. Um dia escreveu um livro grande que dedicou à sua mãe. Escreveu também mitos e meditações. Tratados da alma e do corpo: Do ofício da fala, Do ofício de amar, Do ofício de ladrão. Estrabão transcreve passagens inteiras das suas cartas da Índia: “uma vez [...] estava muito apaixonado por um rapazinho que vendia cigarros na feira de Málaga e não conseguia vender nada... então fui ter com ele, descalcei-me e fui pela feira fora, a vender cigarros, com o tabuleiro de madeira”.[iii]
Era militante apenas do prazer. E a escrita, ainda por cima, não era, se calhar, um dos grandes prazeres que tinha. Tinha, por exemplo, muito mais prazer em comer, em beber e em foder do que em escrever[iv]. Mudou de casa trinta vezes. “Desejava morrer num lugar público, sentado num banco de jardim e esperar a morte ao amanhecer”.[v]
Sobre a sua morte escreveu Cícero:
Scribens est mortuus” (= morreu escrevendo) (Cato, 5).


[i] cf.  “Resquiescat in Pace”, publicado no volume colectivo Dep. Leg. n.º 23 571/88, Lisboa, frenesi, Setembro de 1988.
[ii] verso de O Medo, Lisboa, 3ª ed., Assírio & Alvim, 1997, p. 333.
[iii] cf. O Independente, 20 de Junho, “Obituário: Alberto Raposo Pidwell Tavares (1948-1997), «Uma existência de papel»”, por Laurinda Alves.
[iv] cf. Diário de Notícias, 20 de Março de 1994, “Entre...vista com Al Berto”, com Catarina Portas.
[v] idem 2, p. 29.


[in Eis-me acordado muito tempo depois de mimuma biografia de Al Berto, de Golgona ANGHEL, em curso de edição]

In L'Homme approximatif


Eu falo de quem fala de quem fala que estou só
Eu sou apenas um pequeno ruído eu tenho vários em mim
Um ruído amassado gelado na intersecção das ruas
despejado no pavimento húmido aos pés dos homens
precipitados correndo com as suas mortes
À volta da morte que estende os seus braços
Sobre o relógio sozinho respirando ao sol. 
Poema Tristan Tzara
"Imagem": Theo Van Doesburg

A BANDEIRA É MINHA


Eu já lá estava.
Depois tu vieste molhada na utopia do regresso.
E ficámos os dois,
sozinhos na pradaria
com metros e toupeiras a escavar-nos a imaginação marginal.
Tricotámos girassóis e sorrisos em acrílicos Van Gogh,
cortamos a orelha esquerda à espera,
e moldámos a felicidade segundo o cálculo infinitesimal da cama.
Houve vernissages de panos turcos e
instalações automáticas nas galerias dos desejos.
Houve beberetes e bebedeiras,
prados coelho e antónios vieira.

Agora estamos os dois
sozinhos,
cada um com o seu pedaço de tecto e de sonhos,
a passearmos ao Domingo com uma cachorrada esfomeada
no complexo comercial da paciência.


Poema: Golgona Anghel 

Os Miseráveis



‎Vítor nasceu… no Jardim das Margaridas. Erva daninha, nunca teve primavera. Cresceu sem pai, sem mãe, sem norte, sem seta. Pés no chão, nunca teve bicicleta. Já Hugo, não nasceu, estreou. Pele branquinha, nunca teve inverno. Tinha pai, tinha mãe, caderno e fada madrinha. Vítor virou ladrão, Hugo salafrário. Um roubava pro pão, o outro, pra reforçar o salário. Um usava capuz, o outro, gravata. Um roubava na luz, o outro, em noite de serenata. Um vivia de cativeiro, o outro, de negócio. Um não tinha amigo: parceiro. O outro, tinha sócio. Retrato falado, Vítor tinha a cara na notícia, enquanto Hugo fazia pose pra revista. O da pólvora apodrece penitente, o da caneta enriquece impunemente. A um, só resta virar crente, o outro, é candidato a presidente. 

Poema: Sérgio Vaz
Fotógrafia: Luiz Mourier em 1982, no Rio de Janeiro.