domingo, 16 de outubro de 2011

O segredo do revisor



Os homens erram muito.
E ele corrige, meio louco, feito Aguirre,
tirando chapéu de cabeça
ou pondo-o, conforme o caso.
Viu que Camões é quase nórdico de frio
em sua epopéia e que a saudade é doença latina
a latejar no canto escuro cordial.
Pensa em Pierre Larousse que amava os
revisores,
em Erasmo de Rotterdam, Servet, Machado de Assis.
Viu que os livros têm defeito:
todos dizem a mesma coisa:
enquanto um entra pelo ânus do mundo,
outro sai pela boca, outro enxerga com o dedo,
ao passo que outro escapa pelo nariz.
O revisor revisou o mundo e viu: Deus
no malogro, em lodo, num lago de logos,
escondido e disfarçado nas mil faces da matéria
e do informe, do indizível. Face invisa.
E reconheceu, conforme, que só assim
Deus lograria a Si salvar
escapando ao pente fino das razões,
à cética revisão dos homens.
E o revisor guardou, pra si, esse segredo.
Baixou então o dê de Deus, conivente:
a protegê-Lo, para proteger a si.
Por fim, pensou: “Os homens erram muito mesmo:
são pedantes, distraídos e vulgares”.

Poema:Vicente Cechelero
Para Aurélio Buarque de Holanda,
que foi também revisor (em memória)

sábado, 1 de outubro de 2011

Como era lá pra fora


Como segurando o crepúsculo
O fogo de chão
Esquenta a chaleira negra
E o amargo do chimarrão reveza a goela com a cachaça
Pelego de ovelha sobre a tábua de araucária polida
A porteira aberta
O carroção e a junta de boi
Andando lentamente
Como se retrocedesse o tempo
Passado e presente misturado
Cavalgando os buracos circulares com cacos de cerâmica
Que hoje abrigam as taperas e a alma de Teiniaguá
O carro avançando o tempo para o futuro
A mesma poeira
A estrada de chão
O açude
O campo pampiano
Os lambaris em pulos
Manchando a paisagem de cor prata
A goleira de pau roliço e a trepadeira magenta
Enquadrando o horizonte que lanha
O verde do azul
As caturritas rompendo o silêncio
As margens do arroio ribeiro
Os butiazeiros carregados de frutos
Coquinhos no chão
Corroídos pelas formigas cortadeiras
Nos capões,
Nos entreveros dos maricás
O eco do pajador
No banhado o esteio com água pela cintura
Abriga os pés da coruja baguala
Como sangue de mesma geometria
A arquitetura do João barreiro
Sobre os postes de energia latente
Cachopa de marimbondo
Mel de abelha
Eucalipto
Tudo é ocupado por bicho guasca
O sol queimando o torrão
O chão do graxaim
Revirado pelo arado
Sanga vertendo
Sanguessuga
Monocultura
Aeromotores e veneno
Riscam a beleza miúda
Da terra do índio minuano

Poema: Rodrigo Vargas Souza
Desenho: Glauco Rodrigues