quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
O rio com sapatos (Rio dos Sinos)
O rio nasce azul (percurso superior)
cristalino
nas montanhas de Caraá.
O rio nasce no litoral,
mas sua água não tem sal;
sua água é limpa
encima do morro
a água nasce
viva.
A água do rio desce,
leve,
leva o tempo encarnado em sua pele cristalina,
lava,
faz da matéria bruta,
macia,
faz da forma caótica,
polida e círcular;
seixo em forma de seios
de sereias perdidas e embriagadas,
do colono bêbedo,
de cachaça de Santo Antonio.
O rio avança terra adentro,
desce as montanhas
levando consigo o brilho da escama de peixe
Lambari,
Cará,
o peixe é vivo.
Viola,
Dourado,
corta a água e mata a fome
do colono,
do bugre
sem nome,
sem língua,
sem terra,
que viveu em harmonia com o rio
passado.
Como o canto do Martim-pescador
o rio flui até as suaves planícies,
rasga a terra e se lanha nos Sarandis,
transforma-se em água parada
no ventre nu das bromélias,
recebe o sêmen dos mosquitos
em uma orgia de plantas e insetos invertebrados.
Invertebrado é o rio (percurso médio)
que contorna as cidades do vale;
são arranha-céus que tocam o céu azul
e projetam suas sombras de vidro e concreto
no rio opaco.
Na paisagem de fábricas,
dos colonos que não são colonos,
mas burgueses fabricantes de sapatos;
cospem-se resíduos de curtume no rio,
agora os peixes não têm escama,
os peixes são feitos de couro, chorume e tumor.
O rio é denso
como a memória do pescador,
como a cachaça do pescador,
como o barco podre e desbotado do pescador,
como o barco inerte na terra seca.
O rio que outrora nadavam os peixes,
bóiam sapatos.
No rio são despachados corpos assassinados,
corpos de gente de carne e osso,
apodrecidos
na mucosa do rio,
na lama negra do rio
que é rompida somente pela draga;
a draga que é o coveiro do rio,
a draga que mistura o lixo a areia,
a draga que transforma o rio em terra,
a draga que violenta o rio;
o rio violentado,
o rio cadáver,
o rio que fede,
o rio que tem sua água calejada,
avança lento, agora com os seus sapatos.
O rio que corria (percurso inferior)
agora caminha pesado
carregando o lixo,
o esgoto urbano,
o coco humano.
Tudo que é oco bóia no rio,
fogão,
geladeira,
hardwares,
hardcore.
E nesta altura não há mata ciliar,
não há pássaros,
não há peixe,
há apenas os cadáveres jogados na calada da noite,
há apenas os casebres amontoados
com suas palafitas corroídas
pelo rio ácido;
há fome,
há lixo,
há fedor,
há a pobreza do pescador ribeirinho
que insiste em sobreviver às margens;
as margens de um rio sem vida.
A figura do pescador
agora faminto
morre com rio.
Nas margens deste rio não habitam os cães
sem plumas de Cabral,
os vira-latas daqui
descendem do cusco de Blau;
Mas que importância isto tem?
São cachorros com pelo ralo,
corroído de sarna,
secos como seus donos pescadores.
São rios diferentes,
mas assemelham-se na sujeira e na miséria.
Nas marmitas lambidas
pelas moscas,
nos casebres de telha de amianto
e pregos enferrujados em tábuas podres,
os pecadores existem,
labutam dia a dia com a água densa e oleosa,
com a esperança de vencer o lixo,
a fome,
a miséria.
O rio caminha com seus sapatos,
sua pele líquida, lanhada e anêmica
abrigam poucos peixes com chips no estômago.
Sua pele já não tão líquida
abrigam poucos peixes com lixo no estômago,
peixes com tumores e pescadores com fome
protestam e não se esquecem de Outubro de 2006:
Mais de 800 pescadores sem o seu sustento,
100 toneladas de peixes assassinados,
boiando, inertes.
O rio com sua pele sólida crivada de cadáveres
abrigou como em Hiroshima milhares de mortos;
este é um sistema de padrões.
O rio caminha rumo ao delta,
mistura-se com outros rios,
todos fedem sujos,
podres,
com águas turvas,
tristes,
trazem poucos peixes mutantes,
peixes eletrônicos,
doentes de esgoto,
doentes de química,
doentes de lixo;
o rio caminha
e como ser vivo
agoniza.
O rio com os outros rios
caminha em direção ao seu fim,
caminha e com os outros rios vira lagoa.
O rio com os outros rios
caminha em direção ao seu fim;
sonha em matar sua peste no sal do mar
mas o mar está além do horizonte.
O rio caminha,
caminha com seus sapatos,
caminha sufocado.
Poema: Rodrigo Vargas Souza
Imagem: Rio do Sinos em Out de 2006 - retirada do site do trensurb
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