domingo, 16 de outubro de 2011

O segredo do revisor



Os homens erram muito.
E ele corrige, meio louco, feito Aguirre,
tirando chapéu de cabeça
ou pondo-o, conforme o caso.
Viu que Camões é quase nórdico de frio
em sua epopéia e que a saudade é doença latina
a latejar no canto escuro cordial.
Pensa em Pierre Larousse que amava os
revisores,
em Erasmo de Rotterdam, Servet, Machado de Assis.
Viu que os livros têm defeito:
todos dizem a mesma coisa:
enquanto um entra pelo ânus do mundo,
outro sai pela boca, outro enxerga com o dedo,
ao passo que outro escapa pelo nariz.
O revisor revisou o mundo e viu: Deus
no malogro, em lodo, num lago de logos,
escondido e disfarçado nas mil faces da matéria
e do informe, do indizível. Face invisa.
E reconheceu, conforme, que só assim
Deus lograria a Si salvar
escapando ao pente fino das razões,
à cética revisão dos homens.
E o revisor guardou, pra si, esse segredo.
Baixou então o dê de Deus, conivente:
a protegê-Lo, para proteger a si.
Por fim, pensou: “Os homens erram muito mesmo:
são pedantes, distraídos e vulgares”.

Poema:Vicente Cechelero
Para Aurélio Buarque de Holanda,
que foi também revisor (em memória)

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